Há algum tempo, eu e um amigo
travamos uma conversa. Travamos mesmo, pois o diálogo não se desenvolveu. Ele
acreditou que estávamos debatendo, no entanto, em momento algum procurei por
vitórias ou derrotas de argumentos. Eu buscava compreender o motivo ou o
sentido do que ele dizia sobre a preferência dos bichos em detrimento
das pessoas. Comparou o tratamento dado aos animais de estimação versus aos colegas de trabalho, afirmou, inclusive, notar melhor atenção àqueles de quatro patas do que aos próprios cônjuges.
Para o meu amigo, isso implicava
em um problema ético, além de outros, como carência extrema e inversão
de valores. Há que se ter uma hierarquia de sentimentos, dizia. Se um barco tiver
afundando e for preciso escolher entre um cão ou um ser humano, quem deverá ser salvo, questionou.
Confesso que fiquei surpresa! Os
cinco cães e a gatinha que vivem comigo são considerados como parte da família,
ocupam lugar de filhos, muitos outros amigos e boa parte das pessoas
com animais de estimação também os consideram assim e, como sabemos,
isso se estende para o âmbito jurídico nas disputas pela guarda, preferencialmente compartilhada, ou avaliada para garantir melhor
qualidade de vida e bem estar dos bichos, de modo semelhante ao que ocorre
com os filhos.
Após as reflexões e uns escritos
de relance, guardei as palavras, deixei amadurecer o pensamento. A temática dos
bichos, além de aflorar as minhas emoções, desperta o meu interesse como objeto
de estudo. Ao meu tempo, e tenho feito as coisas com muita calma ultimamente,
prossegui a leitura de uma tese em defesa dos animais de Alfredo Migliore, umas
400 páginas que me prenderam graças à capacidade narrativa do autor em fugir
dos cânones acadêmicos, abarcando para a autocriação e a ampliação da lealdade.
Ao questionar sobre os direitos subjetivos dos animais, em especial, dos grandes primatas, a pergunta de Migliore, basicamente, é: reconhecendo os fundamentos que legitimam a personalidade jurídica e de direitos a partir da dignidade, moralidade e igualdade a todo e qualquer ser humano, poderiam esses mesmos princípios legitimar também o reconhecimento de direitos aos animais não-humanos?
A dignidade não é algo que se
possa proclamar nem conquistar. É algo que se reconhece: o respeito aos
direitos comuns a toda espécie humana que resulta da sua própria natureza. Para
além da dignidade humana, pode-se comparar a natureza animal à própria
continuidade evolutiva. Todas as formas que vivem atualmente são descendentes
das que viviam outrora, seja pela premissa evolucionista de Darwin, pela teoria
do gene egoísta de Dawkins ou da integração funcional dos organismos de Cuvier,
a conclusão aponta para uma série contínua que os biólogos chamam de “continuum”.
No campo do direito, a moral
comumente é associada a uma categoria exclusivamente humana, corresponde à
emoção, à capacidade de compaixão, à conduta de prevenir ou evitar o sofrimento
alheio. Embora aleguem exclusividade moral ao homem, sabemos de muitos casos dos
sentimentos, percepções e emoções altruístas nos animais entre os seus e entre espécies diferentes, como exemplo, os relatados de “A compaixão dos animais:
histórias verdadeiras sobre a coragem e a bondade dos animais” de Kistian Von
Kreisler.
Por fim, a igualdade, não é uma
medida de equiparação absoluta entre homens e animais em todos os níveis, nem
mesmo os seres humanos são iguais, no entanto, rompida as barreiras das
espécies, pode ser admitida uma igualdade natural que permita igual
consideração por seres diferentes nos quais impliquem tratamentos e direitos
distintos. Além disso, todos somos capazes de sentir prazer e dor, naturalmente, e é de interesse vital evitar o quanto possível a dor
alheia e o sofrimento de um ser sensível a ela.
Embora seja importante reconhecer
direitos, sempre haverá conflitos entre grupos mais fortes que outros,
já que o homem vive uma realidade antagônica em relação aos animais. Somos
capazes de proteger nossos cães e gatos, e até temos acompanhado criações de
animais exóticos, iguanas, coelhos e porquinhos, enquanto animais domésticos se
comportam como verdadeiros filhos de quatro patas! Temos os bichos como um de
nós e os protegemos como parte da matilha humana, no entanto, ainda matamos o
boi, permitimos o descarte de pintinhos machos, o enclausuramento dos frangos e
porcos para alimentação, sem falar nos laboratórios e experimentações para fins
cosméticos e farmacêuticos.
O que eu aprendi de mais
relevante com os escritos de Migliore, é que tão importante quanto a capacidade
e a personalidade jurídica, o que faz a grande diferença na proteção dos
animais é a lealdade interpessoal. Temos que garantir direitos aos animais,
mas, sobretudo, temos que ampliar nosso rol de lealdade aos bichos. E é isso
que eu tenho visto acontecer nos grupos de proteção, nos movimentos de repúdio e
comoção aos maus tratos e caçadas, como foi o caso do leão Cecil. Sei também
que muitos outros, além de mim, consideram seus bichos como filhos de quatro patas e não pensariam
duas vezes em salvá-los dum naufrágio caso tivessem que escolher entre eles ou
um dentista imoral.
"Se consigo imaginar-me no interior da existência de um ser que nunca existiu, posso imaginar-me na essência de um morcego ou um chimpanzé ou uma ostra, de qualquer ser com quem partilhe o substrato da vida." Marion Bloom - personagem de James Joyce
ResponderExcluirBoa citação, Luiz!
ResponderExcluirUm abraço ;-)
Lealdade aos bichos como decisão ética.
ResponderExcluir